quarta-feira, julho 29, 2009

Fungagá da Bicharada, n.10, Janeiro 1977 - capa

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2 comentários:

entremares disse...

Era uma vez um pastor…
Como todos os pastores, vivia sozinho, num pequeno monte perdido algures nos confins de um Alentejo profundo, afastado das aldeias, tendo por única companhia o rebanho de ovelhas, o Catita e a Migas. Já não era novo, mas ainda conseguia correr, quando necessário, para aplicar uns correctivos nas ovelhas mais ariscas, se bem que essa tarefa estivesse habitualmente a cargo dos seus ajudantes, em especial a Migas.
Era a sua vocação, a sua paixão... e a sua vida.
Sempre fora pastor. Primeiro, a ajudar o pai, caseiro numa quinta da vila, depois por conta própria, mal largara os bancos da escola, já lá iam uns – quantos ? – quase setenta anos…
Mas os grandes espaços … o silêncio das tardes de verão… as trovoadas secas do Outono… provocavam-lhe uma sensação de liberdade que mais nenhuma profissão poderia igualar.
Ele ali, perdido na imensidão do verde - amarelo da primavera, fazia parte da paisagem, sentia-se parte daquele todo, e nem conseguia imaginar a sua vida fora daquele mundo, por vezes árido e agreste, por vezes melancólico… mas nunca monótono. Ou não tivesse os seus animais de companhia por perto…
O Catita era o mais velhote, um rafeiro já em idade de reforma. Já o acompanhava há muitos anos, conhecia-lhe todas as manhas, os gostos e os pequenos vícios. Sabia que às vezes fingia coxear, quando queria receber atenção extra, sabia que era doido por açorda – ou não fosse ele um rafeiro alentejano – e que se viciara em torrões de açúcar, o que não era nada bom para os seus dentes. As ovelhas já lhe haviam perdido o respeito, e por mais que ladrasse, não lhe obedeciam.
A Migas, em contrapartida… impunha muito respeitinho.
E isto porque a Migas era a verdadeira guarda do rebanho. Uma guarda muito especial.
A Migas era uma coruja.
- Migas… ali. – e o pastor apontou um par de ovelhas, afastadas do resto do rebanho, a roer uns arbustos.
Imediatamente a ave, antes pousada sobre o seu ombro, bateu as asas e voou de encontro às duas tresmalhadas. Volteou-as num voo rasante, enquanto soltava uns guinchos agudos.
Como que por magia, as ovelhas retrocederam de imediato, correndo a juntar-se ao resto do rebanho. Já sabiam, por experiência própria, não ser boa ideia contrariar a Migas, quando ela fazia aqueles voos rasantes… a menos que quisessem receber alguma daquelas bicadas dolorosas que a coruja tão bem sabia dar.
Nem o pastor encontrava uma explicação completa para aquele enigma, que era a sua Migas, uma coruja.
Sim, porque as as corujas dormem de dia... para caçar à noite. Mas Migas dormia de noite, equilibrada numa das vigas de madeira do tecto da cozinha, perto da chaminé. De dia, fresca como uma alface, saltitava entre o conforto dos ombros do pastor e os voos rasantes que adorava fazer às ovelhas, assustando-as quando lhes guinchava junto das orelhas.
O pastor descobrira a coruja, na altura muito pequena, caída por entre os fardos de palha. Provavelmente, perdera-se dos progenitores, ou talvez já nem os tivesse, que isto hoje em dia os caçadores já disparavam contra tudo o que mexesse. De qualquer dos modos, sentira dó do animal e levara-o consigo para junto da lareira. Alimentara-a pacientemente, sempre à espera que a ave ganhasse força suficiente nas asas para voar, conquistar o seu espaço.
Mas a ave ganhou força, aprendeu a voar... e não partiu. Ao invés disso, teimava em o acompanhar para toda a parte, empoleirada no seu ombro, como se de um papagaio se tratasse. À noite, parecia surpresa por o pastor se deitar e adormecer.

(continua...)

entremares disse...

(...continuação)

Nos primeiros tempos, voava por dentro do monte, correndo todas as divisões, por vezes saindo até para o exterior, em pequenas excursões nocturnas. Mas depois mudou de atitude . Aos poucos, copiou-lhe os hábitos, e os hábitos sobrepuseram-se à natureza. Passou a recolher-se quando o pastor se deitava, primeiro pousada sobre uma das cadeiras do quarto, depois na cozinha, junto da chaminé. Aprendera a apreciar a luz do sol e o fresco da manhã, e até passara a protestar ruidosamente quando o pastor se demorava em abrir a porta do monte, ao alvorecer.
- Tu és a vergonha das corujas. – repetia-lhe o pastor amiude.
Mas a coruja parecia não se importar com os comentários.

Um dia, estava ele a comer tranquilamente e eis que aparece a coruja, cozinha adentro, as asas num reboliço, guinchando frenéticamente.
- O que foi agora ? – quis saber o pastor – Não tinhas ido caçar o almoço ?
A coruja ainda bateu as asa um par de vezes, antes de se imobilizar junto dele, mesmo à beira do seu prato. Logo de seguida, e com o maior dos descaramentos, atira-se à comida, debicando furiosamente os pedaços de carne que o pastor preparara para o almoço.
- Ora esta, o que é que temos aqui ? – e o pastor ria-se a bom rir – quer dizer então que a menina veio lá de fora nesta correria porque lhe cheirou a comidinha, não foi...
A coruja ignorou-o, continuando a debicar alegremente no prato dele.
- Já agora – e o pastor falava como se ela o compreendesse por inteiro - ... a menina sabe o que está a comer, sabe ?
Claro que a coruja não sabia, o que também não era importante.
- Migas, minha linda... migas, isso é o que tu me estás a roubar, bem nas minhas barbas...
Ficou a vê-la comer. Como o bico, afastava a o pão e bicava os pedações de carne gordurosa, avermelhados de pimentão. Desde quando as corujas apreciavam aquilo ?
O pastor continuava a rir, bem disposto.
- Está bem está bem, podes comer tudo... Migas.
A coruja interrompeu a pequena refeição e virou-se para ele, como se percebesse que aquelas palavras lhe eram dirigidas.
- Migas- repetiu ele ... sim, isso mesmo... Migas.
A coruja guinchou alegremente.
Logo de seguida, voltou à refeição interrompida.